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O direito à cultura local

O direito à cultura local 
Pedro Moreira Nt

Você vai ter que ir até ao final para entender do que se trata. E terá de me perdoar por eu insistir na criatividade como fonte do desenvolvimento humano, que realiza a arte e o direito de escolhas.

Contra opções - que são coisas dadas, que estão por aí, as escolhas são construções, manifestações de valores e se determinam na ética de sua realização.

Sinto dizer, pode fazer opções, mas antes realize escolhas.

O mundo da norma está doente, a normalidade tornou-se uma doença grave feita da ignorância, burocracia e guerra. Assim, requerer normalidade talvez seja uma impossibilidade que não mais se pode conhecer quais sejam normas que digam o que é e o que não é normal.

É normal que a falta de competências, formação profissional, pouco e ou duvidoso trabalho adensado em currículos, atividades em estudos, pesquisa, práticas sociais em arte e cultura estejam presentes na vida política na área e com pouca participação técnica.

Ganhos a mais em troca de subsunção a ações que não se incorporam à realidade local, às necessidades de desenvolvimento social e comunitário, uma dimensão que oferece suporte ao crescimento da cultura, da criatividade e arte.  

Ser normal no mundo contemporâneo frente às divergências econômicas se refere à uma posição agressiva, competitiva, de conquista e construção sucessiva da acumulação do indivíduo individualizado para o sucesso. As estratégias mais norteadoras dessa regra condiz com um network, rede social de interesses, de trocas de favores, de produção do ciúme e da inveja em relação ao bem material, de consumo e conexão com as novas tecnologias, de construção de muros, barreiras, especialmente burocráticas no intuito de uma criatividade legalista, normativa para a manutenção dos centros de poder e de decisões colegiadas dos interessados convidados a participar.

A normalidade, portanto, perpassa uma vida desvinculada, de cada um no seu território, no seu quadrado como a condizer a cada espaço com o seu algoz com o qual, cada um, em sua individualidade deve lutar. A naturalização dessa situação concorrente com a solidariedade também é produtora de uma contingente amarra das formas expressivas, alojadas em espaços que não sustentam a intenção frente a baixos orçamentos de produção, condicionando os agentes socioculturais, artístico-culturais a parâmetros menores por serem apenas locais, comunitários, sociais.

Para "perdoar" essa falha de serem quem são se utiliza de processos estranhos ao desenvolvimento dos valores criativos. Eles são explicados, educados a se comportarem. E em se aculturar suas almas, as suas verdades comunitárias em troca de um pseudo-aprendizado, indutivo que os leva a cumprir um conhecimento universalizado da cultura e arte, se realiza como "valor" a reprodução do conhecimento.

Postos importantes da cultura ficam amarrados a uma sistemática de "favores" que alimenta uma máquina que falha em sua base, que não objetiva, não alcança e nem aprofunda-se na personalidade comunitária.

Carnaval, folias de reis, manifestações populares, atividades de aprendizado mútuo da sociedade, expressões vivas do artesanato, do desenvolvimento humano é trocado por algo aparentemente limpo, "clean" na sua aparência como "atividade popular" quando, em verdade é a expressão criativa social, de valores arraigados na cultura e história da população.

São determinações que subdividem o investimento em arte e cultura com fins meramente teológicos, isto é, que que buscam um fim definitivo, um fim na objetivação de políticas que não perduram por não pertencerem à realidade sociocultural. 

Trata-se de valoração, de ocupação ou alocação da pessoa criativa por números, tabelas, letras e outras formas de manipulação da inteligência sensível humana.

Uma sensibilidade posta em espaços encerrados, separados, diferenciados do que possa ser nacional ou internacional como grande valor frente à viva manifestação da cultura local.

O bem social comunitário em relação à expressividade artística, cultural não se forma desenvolve de um dia para o outro. São tempos de trabalho duro que envolve toda uma comunidade, que se apresenta como ação civil ética, de escolhas para um modo de vida, para um bem social.

Isso se dá como ética, considerando para isso o outro como canal referente da mesma complexidade existencial, da qual, se espera compartir, viver no sentido de comunidade humana gregária, de conviver, interagir e aprender com, aprender junto em um processo de crescimento coletivo.

Em tal situação, os jovens formam o exército do abandono, de ausência educacional no âmago de seus valores comunitários. Causa de perda de livre-arbítrio ou negação de sua própria "identidade" sociocultural. 
A juventude é manipulada no sentido de que a sua formação ainda que não alcançando todas as objetividade da vida profissional atua profissionalmente com valores de investimento muito abaixo do que um profissional deveria receber por sua contribuição para o desenvolvimento da cultura local.  

Com a instigante facilitação de uma absurda pedagogia da cultura, de explicações de como alcançar seus objetivos, de ter em mãos o formulário que os torna profissionais, e por terem como alcançar certa quantidade de investimentos - mesmo que abaixo do que poderia ser investido em arte e cultura -, aceita-se ao  cumprimento de tais obrigações, as regras que os levam a certos deveres subentendidos como valor de cidadania. No entanto, as estruturas políticas ao esconderem a verdadeira face em um falso compartilhar os meios produzem a reprodução de conhecimentos secundários como mais importantes pondo em falta a realidade social-comunitária, artístico-cultural de uma cidade. 
Como a finalidade, o fim de alcançar o maior número, de massificar os mesmos modelos culturais externos com expectativa de resultados de satisfação - de uma juventude colonizada -, cumprindo-se finalidades, de promover espaços pequenos de poder e vantagens, de oportunidades imediatas impede-se a expressividade criativa local.

A importância da educação não pode ser comparada aos processos que desenvolvem a cultura, por isso não são apenas a ação dos procedimentos técnico-didáticos, da pedagogia, das ciências da educação que realizam a expressão criativa da cultura local. São temas e estudos completamente diferentes. 

A cultura local necessita de seu direito de ser cultura.

 Derrubando a expressão vida da comunidade local em troca de pseudo-shows (paralisantes) a convidar artistas de renome nacional/internacional em contrário da cultura local. Investe-se para diminuir o acesso ao maior número possível de valores de investimento público à comunidade em favor da massificação de uma cultura de estética planejada.

A pouca compreensão da realidade, de conhecimento dos valores sociais e culturais são, em verdade, a continuidade de políticas de um apartheid de exclusão de profissionais da cultura e dos agentes culturais, dos agentes artísticos da cidade.
Esse modo de neutralizar, de colocar em segundo plano de ser um crew de fringe, de participação secundária da comunidade destrói o que mais importante pode ter uma cidade, os seus valores, o orgulho de conhecer quem manifesta a cultura local. 

Trata-se políticas para criar uma juventude obediente, comprada, que recebe por isso - que se profissionaliza no imediato dos interesses - e os faz, mesmo com a maior de suas manifestações como  agentes da destruição, a favor de um "cosmopolitismo" que exclui a vontade popular.
A favor portanto de "bons-professores" que em seus cargos "ensinam" como devem se comportar  as gentes vivas, a serem, portanto, autômatos, ocupados moralmente, colonizados, e se manifestarem no horário da "campainha" de projetos fictícios, projetos-mãe que carregam toda a ideologia do automatismo, da vigilância, do assistencialismo aos "pobres artistas". 

A cultura não tem mais artistas, tem professores que ensinam a todos se comportarem e receberem o seu grau de compatibilidade a um modelo que exclui o  movimento, o humano. 

Ao se desvencilhar a cultura local de sua humanidade, de sua verdade, tornar-se "elemento" de grupos, em operar, "trabalhar" a favor de quem os apóia (apóia?) nos jogos de interesses, de cargos, vantagens, poderes e salários.

Feitos de falsas-manifestações, realizadas nas opções (já previstas) de uma lista - entre privilégios - , em seguir os protocolos burocráticos de políticas que os discriminam, que deseja lhes retirar o sagrado, o direito em fazer escolhas, a única vantagem humana por ser criativa, de ter em si apenas a liberdade.

Será que está assim a relação com as políticas públicas em cultura?

É possível que não, que essas palavras sejam percepções muito distanciadas do real, da viva manifestação da cultura local e de verdadeiros profissionais.

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