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Projeção do óbvio





    
O óbvio, disse Nelson Rodrigues e, talvez também Suzana Flag, (a bandeira ou as pétalas do verdadeiro lírio), alma superior, diz ele, que o óbvio é alguém sentado no meio-fio de uma rua chorando e usando a gravata como lenço.        


    Essa individualidade lastimosa que nos diz que esta alma, este ser bem ajustado ao sistema, bom executivo, ainda, por alguma humanidade desconhecida se limpa no adorno, na forma, na gravata suas dores impermeáveis por nossa visão.


    O mínimo que nos conta o máximo, ele, fora da casinha, da inserção grupal. Não vemos que o sujeito está revestido da técnica, e não entendemos porque aquele corpo revestido do uniforme, da formalidade, chora. Dizemos, não cabe, ele nos põe em uma sinuca, está fora de questão, e isso, por fim se faz doloroso. Ele chora, fora do grupo , do que é compartimentado,  ele, um elemento.


    Ficamos assombrados com isso. Decidimos por uma inteligência ambulatória que cuida dos feridos, que se trata apenas de uma piada, algo nonsense. De que raça, de que turma ele é, está inscrito na gravata, que exige a camisa, que define a calça, o sapato, o penteado e a postura. Mas está fora de questão. 


    Está no meio-fio, na sarjeta. Um técnico, um cumpridor de tarefas, um executor, ou um executivo, alguém que devia passar por cima de todo sentimentalismo, voar além das coisas cotidianas, da mais rasteira emoção, essa massa carnal, essa chave de fenda, esse coisa chora. Estamos apavorados com isso, o que o influenciou de tal maneira a pô-lo neste lugar. O lírio sagrado dos tempos.

    

    A visão multicultural, apenas nos indica a localização, a forma, as características - aliás vistas como estilos - ( em se tratando de uma couraça permeável, de fato, de roupagem, que se traduz por comportamentos prévios) retomados em cada posição de um modo de ser, pensar, coexistir em todas as suas diferenças, considerando que por tais  dessemelhanças no espaço se pode dizer, pela ótica científica de multiculturalismo só pode ser vista através de histórica separação de suas variáveis através do mecanismo ideológico de uma peneira feudal. 


    Cada buraco desse equipamento define um público-alvo. E com isso, aprendendo essas superficiais manifestações culturais, em toda a sua variedade, tal como se deve entender, ou mesmo persuadir, como que fosse alcançar respostas antecipadamente esperadas por análise e comparações. 


    Ainda porque se parte de uma cultura maternalizada ou mesmo paternalizada, modelar, exemplar retirada da quantidade, como um ponto de convalidação de uma matriz, ou de uma geometria, ou de uma física do movimento dos corpos em espaços delimitados. 


    Multiculturalismo surge dessa visão instrumental, proveniente do fascismo, do nazismo em que se buscava por separar o joio do trigo, conhecer o lugar de domínio darwinista, de seleção da espécie.

 

    Por outro lado, o multiculturalismo nada mais é do que uma visão restrita de uma antropologia social da raça definida, é aplicada, uma avaliação biológica de fonte, fundada na memória do DNA em que se prevê certos estados de expressão cultural de cada povo, grupo, comunidade, indivíduo.


    Com essa peneira óptica, da qual se vê e se inventa novamente o feudo, se pode localizar e mesmo definir como são esses povos. E como essa visão multinuclear parte, evidentemente de um modelo, e da presença interventora do observador, fica evidente que o multiculturalismo promove essa articulação maquinal, dessa técnica, e desse instrumental inferindo que de onde parte se faz acima das diferentes culturas. Uma cultura válida do observador-pesquisador para uma gama de diferentes culturas.


    Retoma-se então ao culturalismo, uma cultura superior às demais. E isso quer dizer, que na borda do fascismo e nazismo, a um passo da eugenia, a um milímetro do apartheid, se faz uma escala, um pirâmide do tipo de Kelsen para se definir os componentes culturais. É um empirismo que sobrepõe-se ao mecanismo ideológico consubstanciado na peneira, no lugar comum e na técnica.


    Com as separações do feudo, através desse esquema de ver o mundo por uma peneira, claro que se apresenta a cultura de onde vem o observador, validando uma cultura, criando o culturalismo. A minha cultura como exemplo, e assim, assume-se outra característica, de aglutinação menor, a comunidade de onde emerge, assim cria-se o comunitarismo. 


    Uma ideia extremamente radical que diz que a menor parte organizada se faz auto-suficiente, e esse pedaço menor do todo, se identifica e assume a responsabilidade devolutiva à lei e ordem, às políticas de governo centralizado que controlam esse princípio sistemático. 


    São grupalidades, subdivisões, ramos em separado que ganham em causa um modo organizativo, se definem como comunidade do bem comum, entre eles, claro. Prevalecendo essa visão em feixe em que cada elemento se faz identificado com seus outros membros, e proliferando esse tipo de organização social, voltamos ao condomínio e ao clube, e certamente à apostila ao invés do livro, ao fragmento, e ao fascículo em sua especificidade, ao definido técnico, à tecnocracia. 


    E novamente voltamos às micro divisões grupais que por pressão ou fermentação desse bolo sistemático os limites, as bordas, as aduanas, as travessias, as fronteiras que limitariam, e também localizariam alguma individualidade.


    O caminho do comunitarismo por associação identitária cultural, legislada por grupalidade faz com que um elemento corresponda ao que o identifica como indivíduo. Ele é a cartilha integral, como único, de todos os outros grupos comentaristas. Bastando a si mesmo por pertencimento e identificação cultural-ideológica do grupo, da parte como todo.


    Se é assim, um do grupo como superior a todos os outros por estrato, conjunto, por estrutura, formalidade como o mais de si e com todos, cria-se a supremacia grupal, um fascismo radical, de espaço feudal fechado.

    

    A supremacia branca, supremacia dos mais conectados, dos melhores técnicos, dos que seguem as regras, cria o cientificismo, o aprendizado para a vida que se devolve ao comunitário restrito, ao grupo. 

    

    Grupos obedientes, seguidores dos manuais, seres vinculados a um fazer utilitário, da qual o útil faz o todo, um todo limítrofe à identidade comentarista encerrada em um sistema que controla a igualdade fundamentalista de sua origem e separa, põe fora a diferença, os contrários e o que for contraditório. 


    A única aceitação são as melhorias instrumentais, técnicas. O desenvolvimento técnico, tecnológico ditam o governo, que mais é hoje, segundo Serres, administrador das exigências do capital, um moderador do desenvolvimento como um gestor, um técnico. 


    É a supremacia divina instalada no correto fazer para certo fazer. Essa pseudo divindade de governo significa centralização. E centralização significa armazém de logística, aquele que repassa as novidades técnicas advindas da cientificidade da forma.

    

    Dessa maneira tangível, apesar de quase abstrata, autoridade. Com isso, o autoritarismo centralizado é atenuado por um dever, o dever do social em suas múltiplas diferenças, chamadas culturais, mas que não passam de grupais. 


    É, de certa forma, o fortalecimento das divisões, das lutas de classe em sua inversão por grupalidades radicais. Autoritarismo, e grupalidade definem a prensa de um fascismo camuflado ao bem-comum como comum a cada individualidade enquanto pertencente e identificado em grupo, conjunto associado de elementos. 


    E o mais interessante e sofisticado são as homogeneizações que na esfera grupal se estabelecem promovendo em cada objeto-elemento componente, engrenagem da máquina ideológica. 


    No futuro próximo, não-tardio, esse amanhã que chega e que acelera e se faz veloz com o movimento do capital na produção de não-trabalho se constitui o aliado formalista da inovação. Por enquanto uma substituição técnica e tecnológica dos insumos. Nesse dia que vêm, se elimina a criatividade, se põe fora a crítica pela aceitação pacífica do deus-ex-maquina cientificista.


    Esse deus menor e com muito poder, ele que corrompe, através de sistemática separações (por identidade e pertencimento) ou os arranjos grupais, chegando ao fim e ao cabo da enxada, a estruturas gigantes, macros, - obrigando aumentar o buraco da peneira para se ver o feudo -, em blocos associativos, até se formar por homogeneização a um único e sistemático grupo, que se chamará o grupo humano. 


    Não mais sociedade, nem pensar, e sim seres com metas garantidas, subsumidos às suas funções de arruela da máquina, controlados e subservientes. Terrivelmente discordantes de qualquer crítica, isso porque o positivismo renovado dá certezas do riso matinal, do que virá. Mas algo mudará no formalismo conceitual do que seja raça, além das tipologias lambrosianas. 


Algo inesperado para essas almas grupais. Com mais custo, devido ao feudal inerente, a essa concorrência de competência-competição para a sucessão-sucesso de planos rasos, de uma vida em game, ou em jogo, não vai custar muito do tempo. Menos do que se esperava. 


    Por hora, esse feudalismo refeito às malhas do xadrez vai mudar. Demora um pouco, não muito, para que haja a devida miscigenação, um modo técnico de proteger o DNA formalista humano. E um modo de homogeneizar as diferenças. Contrario à eugenia, contrario ao livre-arbítrio também, e promissor na unificação da raça humana - não mais separações. Até aqui está tudo certo.


A tecnologia da peneira deixará de existir. Essa peneira feudalista que podia ver as grupalidades vivendo seus formalismos, suas estruturas culturais, suas diferenças. A técnica conceitual, a regra, a norma cientificista de ver será outro.

Será um funil, de onde poucos vêem o todo, um único completo, treinado, organizado, obediente por uma centralidade divinal de um ente tecnificado. Desse panóptico desde Bentham até Foucault, agora eletrônico de moralidade técnica como regra fundamentalista, ortodoxa de um maniqueísmo aplicado, do que é certo ou do que é errado. Um controle com o mapa da nova lei mosaica.


    Se isso tiver alguma coerência, a arte estará fadada ao mais antigo modo bio psicológico de viver - através da comparação e análise. A ser convertida em imitação, reprodução técnica, com o utilitário tecnológico, como bem social de almas instrumentais, cujos fatores serão o esteticismo em cópia do passado.


    A substituição da peça fundante, o ornamental, o enfeite, os berros das cores ajustadas, as grades lógicas do que convenientemente - para todos os grupos ordeiros e supremacistas -, diz ser belo ou confortável, combina com o sofá e se pode ver melhor na TV, no computador do que no teatro.


    Por fim, teremos uma humanidade unicista, grupo único de governo único, universalista encerrado no gabinete da espera, sim, espera de novidade técnica e tecnológica que o algoritmo em processamento fará emergir, aplicável certamente, especialmente ao que se chamará de arte, um bem útil.


Não haverá escolhas, apenas opções. As formas serão muito semelhantes, quase idênticas, e se pode optar por mais alto, mais baixo, largo, fundo amplo ou menor, estreito, da cor do sabão ou das crateras lunares congeladas, de sol marciano ou quem sabe de um piscar incessante de uma estrela que não existe mais. De todo jeito, arroz unidos-venceremos, macarronada na mesma gamela e no mesmo molho, cada alma terá um pacote pronto de certezas, como seguro de vida, e a arte se instalará como um brinquedo eufêmico, de um vazio alegre, nascida de um hobby, de um prazer idêntico.


Bem, parece piada, mas é mais anedota sobre o que passamos e engomamos no ferro à brasa por esse momento.


A pensar, a entortar, que é o mesmo, sair do estado temperado. A pôr na balança ou o mesmo, ponderar, colocar nos pratos as nossas dúvidas como que fosse um encontro de palavras que dormiam na sarjeta. Podemos levar para a casa, mexer com Platão e suas idéias, ou medir na tábua rasa das ideologias, do manual, por que não? E achar, talvez atrás de um trabalho artístico a dedicatória do artista a nós mesmos. Podemos daí, escolher ou quem sabe fazer apenas opções entre o que nos faz bem com o que nos atinge.


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Charlie


 


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