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Arquitetura do passado no presente




 

  Há lugares com mais de seiscentos e vinte e três castelos, testemunha ideológica da história.  A permanência, fulgor de eternidade, posição geométrica de onde se crê a continuidade da paisagem, de uma extensão visível de um fim à distancia, de algo inalcançável. O bicho quer ficar, enfiar os pés no terreno, rasgar a terra e ter raízes. E também quer pular o muro do infinito, saltar o horizonte e se apossar de qualquer torrão onde for caminhar o seu olhar. Amarrado aos sete lados, dimensionado ao mesurado  arquitetônico de seu cubo.

    Estético, se diz inovador, estático, a expressão de um amontoado à bricola do formalismo. Dar a si o mundo, cercá-lo até tudo o mais ficar amarrado, cheio de si. Paredes de terra quente, vidros gelatinosos, duros, mas fleumáticos, comem a paisagem num anti-reflexo, e gira mundo, e o visto engolido que é sempre outro.  Terrenais estruturas no desmazelo ordenado da cultura. E dura nada essa eternidade tardia, vêm cansada, carrega consigo todos os desperdícios, as intervenções das vigas.

    Estêncil higiênico do modernismo, estilismo, cinciletes demarcados, cópia perdoável, metaforismo, rasgaduras, machucaduras exaustivamente polidas para dar o ar de um acaso rough e algum estranhamento à ordem, definida no tabloide de um mapa. Estruturas cuidadas por fragilidades, e quer ser árvore sem inquilinos, sem moto-serras, sem barulhos evidentes da vida selvagem de fora, e aí está a planta. As convicções elaboradas das demoras, e  nas falas, o silenciar sábio de um controlado catador de repertório, questão de etiqueta, técnica. A venda do produto desejado é aceito, milimétrico do dedo em rotisserie apontando o site, as modas, as inversões da novidade. O arquiteto atolado nesse marasmo, - fazer o quê? -, aceita.

    Ninguém deseja permanecer, nem mesmo no cobertor das ideologias, na reprodução estética, na relação espaço coordenado com certeza útil da função arquitetônica. A antropologia cultural lembra que o passado na caverna fez com que a proteção para a sobrevivência, menos complicada, é ainda a construção montanhosa. Aquela quantidade de efeitos, algumas festivas do culturalismo do último século, arquiteturas do tipo bolo-de-aniversário em um neoclassicismo kitsch, salas gourmet junto ao setor de hecatombes, lareira tropical, essas coisas.

    A gente construía no sopé da montanha, cavando fundo o espaço do fogo para dentro da terra, um modo integrado com a natureza - espaço de relações vitais - da alta antiguidade aos dias de hoje, esse atavismo parece abrangente ao controle e domínio, justificado para a proteção, encerrado no castelo, - presente desde o início da antiguidade clássica da história humana -, a construção, a obra, mais valiosa que o terreno onde se estabelece.

    Na modernidade, na era atual, ontem tão cedo, se reverte em um arquitetura móvel. Sabemos que sim, fugimos do formalismo, do conceito - o galinheiro das idéias mortas. E é menos rígida, a construção humana parece até desmontável, a terra vale mais, muito mais, os espaços delimitados de bom muro para se garantir o bom-vizinho, são em tudo, o que agora é o menos importante. A arquitetura já está documentada, não é necessário o objeto implantado, a coisa edificada, o que importa é a versatilidade, a  eficiência casada com o uso do espaço do que o espaço delimitado à função.

    E de uma forma até drástica, se percebe que qualquer lugar se ambienta e não é ambientado, qualquer parte é sagrada, o fogo e o ritual da convivência do bicho gregário pode se realizar no chão, no ar, ao lado da porta, numa ventarola, em uma passadiço, mesmo fora, e assim, a ambientar por tempo indeterminado a sua funcionalidade plural e múltipla.

    Construída na planície, na sobra de terreno - o que originou os chamados sobrados, os edifícios deitados pretendem legislar quem vai, quem volta, quem chega ou quem parte, as distâncias estão delimitadas no controle de si mesmo, controladores de ordem ativos sobre si mesmo. Exige-se check up das etiquetas, o código de barras das normas sociais. É a instalação artificial de classe, uma espécie de pirâmide de Kelsen dentro de um condomínio, onde as regras planificam e comandam os modos construtivos. E põe cada um em seu devido lugar na prateleira do óbvio.

    Não interessa mais as distâncias, o sem-fim, o que está longe e perto, nem horizontes senão a formalidade ao nível das burocracias do tecnicismo aplicado, como muros que se dispõem contra a vontade individualizada, - algo proibido -, no entanto sempre não-social. O social é determinista a uma tipologia da normatividade. Fora essa questão de separação social por benefícios - consagrada ao lugar da posição -, a prévia de uma arquitetura familiar está co-dependente aos regramentos desses ambientes.

    Edifícios, construções institucionais e públicas seguindo essa dinâmica, diminuem a possibilidade criativa do planificador, do arquiteto. As obras, o que for de agora para a arquitetura futura, estão influenciadas a um comportamento que vem espelhado do tecnicismo, como se deu com o higienismo social. A pobreza na periferia, os trabalhadores no subsolo do metrô, nos transportes pintados, coloridos, adornados da coisa móvel, e dos pontos de embarque-desembarque, a parede para isso, a outra para aquilo, um biombo com inscrições, isso serve para isso, e assim aquilo. Gabinetes abertos para se controlar com mais precisão as falas, os gestos, tudo no mesmo plano, portas para quase entradas, muitas saídas fechadas, alturas limites. Esse separatismo continua, talvez mais claro, mais evidente, mais discutido, e, portanto, mais presente. E como transformado, o condomínio da cidade, mais normatizado, mais exigido, mais controlado com regras cada dia menos democráticas e mais impositivas.

    Assim, certamente veremos construções modernistas retomadas, uma reciclagem, algo telúrico no design, e na forma-função, vemos agora mesmo, o edifício com cara de Camberra a Sydney, Dubai ao Qatar, Nova-Paris, aquele barco de vela dura no concreto, prédios com jeito de fogueira luminescente, com formatos de foguete, como ilhas exuberantes de jardinagem ultra-marina, torta de morango com chafariz de champanhe, entre outras caras.  Novamente, o atavismo da cozinha social-natureza se implica, a mimica, e com jeito de mitificação de um real perdido. Como estávamos falando antes, as reocupações dos espaços funcionais para outras funções que vieram a esta Europa depois da II Guerra, um modo de dar um jeitinho-europeu aos problemas econômicos que impediam construções planejadas.

    A funcionalidade pode ser modificada, a forma permanece, a coisa interior é adaptada, improvisada, como se diz para quem acredita em releitura - um conceito que implica na perda da leitura anterior, um modo de explicar a conjuntura pessoal vivida de momento, o desperdício que não é quantificado -, a reutilização, reciclagem da atividade arquitetônica causa, de muitas formas um desgaste no sentido criativo. E, para acalmar os ânimos - em relação às perdas de oportunidade -, se pode dizer que se é inovador - melhor, inovativo, seguindo as regras exigentes.

    No entanto, está aí exponencialmente muito superior, a vontade decisória de uma vida livre, a criatividade. Fim-da-história, a mesmice oscilante, replicada, os lugares vazios a serem preenchidos por arquiteturas menos silenciosas, sonoras, grandiloquentes, mas vazias de L'Arche de Benjamin, um amplo terreno que foge dos territórios dominados da ditadura da solidez definida, da forma-função e do design, e das ambientações corretas para a submissão e apequenamento do bicho humano. O disfuncional que se ritualiza, torna-se maleável, e não-modular, porém flexível, considerando mais a Terra, a Natureza do chão, do que a solidez do castelo e da artificialidade indolente.

    Sem esperança de educação-formação-humana, o tecnicismo está aí, até à entrada da loja de bombons, a vila fechada, as muralhas, as definições dos pés baixos com estruturas descidas, encadeadas, seguindo o terreno para o barateamento, o funcionalismo enfeitado, estandarte das regulações que nos tira o muro do horizonte. E também a perda da vontade de salto qualitativo, obrigado ao horror da vida inovativa - e dentro da regra. O novo higienismo, separação em bloco, em grupo com qualificações internas. No entanto, ainda emergem os que criam, apesar das contrariedades.

    Como diz um amigo, "criar é difícil, você pode tentar, mas dá a maior democracia".

    O que importa, o que está nisso, é que de tanto ser funcional-utilitário a um algoritmo garantido, o final é sempre início, e a mobilidade humana no sentido maior, de seu habeas corpus pode persistir, e vai. E vai que alguém resolva valorizar mais o terreno que o território (legal), mais o bem de raiz do que o bem-imóvel (movilizado), e por fim, como um artista, o arquiteto abandone o castelo e construa por construir, realize a sua interpretação ao invés de rotundas e cenários para um espetáculo. Criar, apenas isso, sem esperança de permanência, construir o que termina, o que se põe ao fim-e-ao-cabo para desaparecer. Se isso acontecer, a ditadura das formas prontas, da imitação, da cópia, do engodo dos ajustes para satisfazer o cliente, isso e mais, passou.

    Não se trata da efemeridade da vida, ou o fim outro de uma nova vida paradisíaca, mas a Terra viva de vitalidade herdada, no sentido de herdade - mesmo de permanência ilusória frente a tudo que se desfaz -, não mais a luta contra eternidade do presente, nem as agulhas fincadas no corpo de alguma alma preexistente vindas de um passado explicado, exaurido no agora. O que fica, o que se antevê, a ética da arte, o seu ato.


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Charlie 

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