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Arte até Marte

 


    A saída do homem da Terra parece não estar muito longe, os dados mostram o aceleramento do planeta. As mudanças climáticas, os limites das condições de vida, as restrições sociais impostas a uma existência basicamente social, e com isso a centralização a pensamentos restritos, frios, modulares técnicos e instrumentais, retirando qualquer possível transcendência que não seja material.

    A identidade social coisificada,  a alteridade no sentido messiânico, mágico, de salvação no mais recôndito entendimento da individualidade. Uma das características do momento é a coletivização forçada ao modo cooperado para um fim específico, manutenção do favo, da disposição medida dos espaços que se estabelecem como que em condomínio. Há uma diminuição geométrica dos ambientes de vida familiar. São muito menores do que se entendia como morada, como residência e, ou propriedade particular ou privada.

    Essa atmosfera reducionista para um mínimo disponível provém da teoria de Taylor, de que as condições de trabalho e de vida, de forma  precarizada seja provida de um bem especializado, como ter internet, segurança, portaria, com um imperceptível limite em que os traçados internos, as ruas de entrada e saída, os lugares de convivência social, a piscina, a churrasqueira, a sauna, ou outro benefício se faça como aparente ampliação de um bem-estar no diminuto. As casas são amplas no espaço delimitado.

    Feito de sobras de terreno, falseando os lugares pouco produtivos como um lugar para o descanso, para a caça, para  a pesca, para uma paisagem da qual, feito atalaia, casinha de visão de horizonte, de amplitude é decodificada como sobrado, a casa feita de dois, três ou mais andares. O sobrado veio disso, dos espaços não-produtivos do qual se ocupava para uma função equivalente, também não-produtiva.

    A verticalização potencializa o terreno pequeno em um ambiente aéreo, maior, e no sentido bio psicológico, em que o animismo ou atavismo individual se mantém, e ao mesmo tempo,  corresponde ao que Hobbes mostra ser o privado como um bem pessoal concebido com o trabalho das mãos, da qual, com a posse em razão da potência e força delimitadora se estenda, e extensão da que amplia, aumenta, amplie a propriedade, trata-se de um fator preponderante ao que construiria por essa energia disposta, para a posse da terra como equivalência na horizontal do que seja aristocracia.

    No entanto, não passa de uma sensação de bem-estar em causa, de um poder, de sucessão psicológica. O sobrado disposto um lado a outro, ou em separado aos limites da rua, definindo as bordas  sociais, garantem a sesmaria, a grande fazenda por espelhamento ao trocar a terra pelo instrumental, pela tecnologia aplicada como correspondente à terra perdida.

    Na verdade, se trata de um treino, uma pressão do capital à culpabilização dos coelhos que não tem toque similar. As populações cortadas ou apartadas dos possuidores, apesar da diminuição dos espaços familiares são a cada tempo, infelizmente, mais despossuídos, não tendo acesso a esse tipo de vida de medievalização, de terra fechada, murada com portões específicos, com documento de clube e assinatura.

    Se antes os homens de fé pediam aos deuses paz, energia para seguir diante das tribulações existenciais, hoje são mais nominativos, são declaradamente mais individualista, de modo que possuindo as mesmas fontes de crença, sejam livros, documentos, organizações-instituições,  tabela de normas, regulamentos para o devido comportamento, são, como disse antes, mais específicos nos seus pedidos: um carro novo, uma casa de um jeito, um cargo, um salário, uma coisa, uma cura, e a salvação porque crer no bem vai até o útil, instrumentalizado desejo.

    Por isso se clama como que chama mais para os trechos, as tralhas de um possuidor de fé do que uma universalização de um valor social. A individualização dividiu em capítulos e versículos as artimanhas das vontades limitadas ao em-si-mesmo, a um estado de ser que desmaia qualquer metafísica possível, aplicação técnica do verbo que se faz coisa. 

    Nesse estado de aparência que a cotidianidade cumpre, o dever como significado e sentido:  ficar na fila pagar a compra, o imposto, documentar em cartório, retirar, devolver, entregar, buscar, juntar algo que cai, andar no lado calçado da rua, etc, como uma vontade definida por extensão moral que se ocupa das veleidades do dia-a-dia. A ritualização do dever legal, se transforma no ápice do entendimento social, de como mecanicamente as pessoas vivem e devem funcionar.

    E isso por períodos de tempo, o que demanda, nesse funcionalismo em que tudo possui uma meta sucessiva, a concorrência dessa moral compartimentada, feita em pedaços. Ter mais, ganhar mais, usufruir mais, viver mais e melhor significa dever de cada um. O outro é a contingência onde se aplica a piedade, e isso quando há retorno.

   Um bem que se faz ao outro deve ser documentado, clarificado para todos os demais de quem faz esse bem, um bem cuja troca é a popularidade e fama de bom do ato de comiseração. Essa vaidade transtornada, a hipocrisia arrumada se chama humildade.

    Espaços amplos de verde desenhado, de lagos, de águas em cachoeira de forma arquitetada, acabada para um fim: se divertir. Aplacar qualquer dúvida do uso, do útil, e do maquinismo político-social do capital que produz almas santas, obedientes e subservientes, gente boa, gente de dever. São mecanismos técnicos que diminuem os estados de calamidade, enchentes, apropriações, usos indevidos segundo normativas.

    Arrastando a população para o diminuto caro, aumenta-se os ganhos imobiliários com a repartição em escala dos terrenos, dos espaços humanos. É a estratégia do mínimo múltiplo individual em que a forma é a propriedade, de fato menor, muito menor, com aparente imensidade, ampliada no virtualismo.

    Antes Marte era a terra dos marcianos, hoje é dos robôs. A intenção clara de transformar o planeta Marte como uma propriedade terrena e fazê-lo produzir, torná-lo uma fazenda imensa, ampla, de aplicação tecnológica necessitou conhecer que tipo de solo possui para a adaptação biotecnológica de sementes, quanto aos espaços humanos, sabendo que já estão acostumados à uma individualidade utilitária, mecânica, instrumental e, especialmente funcional - de acordo com as metas do dever -, vai necessitar de heróis, dos pioneiros orgânicos, dos que vão definitivamente conquistar e popular esse novo e velho lugar.

    Mas há essa dificuldade ainda adaptativa, conformacional dos espaços diminutos. É necessário, portanto, diminuir a quantidade de ex-utilitários, agora inúteis. É uma carga grande onde fome e sofrimento tem atrapalhado o caminho estratégico de uma ordem mundial. A ditadura do algoritmo, da certeza moral aplicada através de legalizações.

    Como diminuir essas populações sem ofender, sem causar dano moral, sem perder a lógica ditatorial do dever a ser cumprido senão com a espera do extermínio natural, piorando um pouco mais as condições para a contínua produção, mesmo que secundária, para o desgaste necessário para que se adiante de uma vez o fim.

    Técnica de doenças, guerras bactérias, ameaças veladas no caixão das boas práticas, de colaboração do bicho aposentado, fora do conhecimento suficiente para o uso devido da tecnologia. Isso pode ajudar no processo de mutação, melhorando a espécie, fazendo com que haja um salto qualitativo, menos corpo, menos alimento, menos estrutura orgânica, mais acoplamento tecnológico na estrutura viva, e mais treinamento, mais educação técnica para a maioria democrática  para grupos menores de aprendizado amplo, especialmente científico.

    Pode demorar um pouco, mas a carruagem-humana pode se transformar num charrete, um cupê, algo mais bem estruturado e tecnologicamente com maior adaptação. Sem dúvida, parece que há uma contra-eugenia de massificação genética, movimento à tiro dos imigrantes, aumentando o processo de renovação do bicho-humano, e isso quer dizer que o capital tem buscado sair do impasse eugênico tradicional para uma higienópolis, o lugar limpinho de outras contrariedades a que os mais deterministas chamam de raça - haveria raças humanas!

     E isso contradiz o projeto de miscigenar, fortalecer o DNA humano. E isso também indica, não apenas como miscigenação protetora da raça humana como também, seguindo mecanicismo inerente ao cientificismo técnico e tecnológico, de homogeneizar, dar uma única aparência  mutatis mutandis, mudar o que necessita ser mudado, deixando ao processo mutante natural a potencialização dessa homogeneização, não apenas biológica como comportamental - isso quer dizer de cumprimento do Dever.

    Veremos Marte verde, o mar no céu caído no solo, água potável, peixes passeando por lá, talvez sequoias, jabuticabas, frutas diversas e outros alimentos, plantações específicas, insetos, animais, e claro, em alguma colmeia de diminuto espaço, os humanos em convivência isolada, juntos, mas separados, unidos no Dever, mas controlados e antecipadamente julgados de acordo com sua utilidade. 

    Veremos quitandas abertas no céu, comidas descendo por naves espaciais que as trazem processadas, feito pílulas. Não teremos mais intestinos, o corpo comerá apenas o estritamente necessário. Nada além disso. Sem bolo fecal. 

     Viveremos mais tempo, pequeninos, diminuiremos mais, e mais, nanicos de tudo, vírus, seremos menores que o átomo e viveremos sem desperdício, cumprindo a ordem da colônia.

        Por muito tempo viveremos ainda cheio de órgãos, complexos em tudo, com mau humor, desobedientes, pequenos ditadores individualistas, formais, e de tudo ridículos. Marte, Ares, deus da guerra, a nossa fazenda no condomínio aristocrático de nossas certezas, por pouca memória, de nossas obrigações colaborativas, cooperativas, associativas, definidas em uma planilha, claro.

        E a Lua, e o que será de Júpiter, Plutão, do planeta Xy3? Chegaremos lá, menores, um pouco abaixo da média, tiquititos, nenês que assumem a reprodutividade técnica como uma aura verdadeira, contradizendo Benjamin, a arte se manterá como algo copiado perfeitamente, pintado igualzinho, comparativos, estilizados, analógicos e tecnicamente perfeitos, será útil para os novos uniformes, para os designs das colmeias sociais, para o foguetinho do tipo jardineira que nos levará de um ponto a outro, e mais que tudo, a arte será a reprodução bonita, do dever certo, que encantará as almas obedientes. Nossa, que lindo, como é bem-feito. O feio, a desobediência.

    Seguimos as obrigações as exigências dos produtores, dos inventores de um concurso, de um encontro, de festivais, nos obrigamos a fazer como deve ser feito. Também seguimos as teses de um ambiente para levar a arte.

    O aspecto engagé, ideológico, o formalismo do formulário, os estratos do dever, da obediência, da regra que deseja prender a arte a um paradigma, a uma aceitação, pior quando de mérito ou de comprovada miséria criativa que é validada, aceita, correspondida como um heroismo em que o kitsch, como que o pinguim da geladeira se jogasse, se suicidasse, espatifasse no solo da guerra, do marte social. 

       Ó, o cinismo de escárnio, de cutucar o outro com um bastão elétrico não tem nada a ver com ironia, isso será a manifesta expressão da inteligência simpática. E até lá, vamos assistindo o desmonte da realidade que desaparece todos os dias. Verdadeiros artistas criadores do óbvio, uma novidade.

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