Se imaginarmos um travesseiro no mar, seguindo a corrente num destino mais ou menos claro ou de certa forma indefinido porque o mar levaria a quem o vê a um território próprio de quem assiste o acontecimento. Podem pensar muitas coisas e podem não definir nadas. Mas tem essa moleza de mar e de ondas boas em que um travesseiro dormita sossegado aguardando que alguém descanse nele, não seria bom imaginar o mar como um lugar de abrigo onde se pode deitar e partir num travesseiro mundo afora? Quem se deita nesse descanso? Nessa proteção e aconchego feminino que é o mar em nos oferecer o seu regaço?
O trabalho da artista Gabriele Gomes tem um tanto disso, um deslocamento das coisas cotidianas que são sinestésicas, possui algo o mais do que a aparência de ser o que são. O travesseiro ao mar, o leite derramado, a purpurina na pedra, a pintura de um recanto parece-nos indicar uma coisa de criança que quer o que gosta no mundo. Quer pôr o que sente na natureza e quer colher da natureza a soma dessas duas particularidades singulares e plurais, a artista no mundo e o mundo nela. Parece dizer isso: os bens que tenho no mundo das coisas, as coisas que gosto, como sentisse a gelatina, o doce; o pudim é aquela pedra pintada, as estrelinhas na água, as pedras enfeitadas na marca dos meus passos; as frutas que amo no amor de ver como são doces e delicadas, em minha existência ponho no mundo como pudesse num toque, num movimento, numa intervenção significar tudo que sou em tudo o que o mundo é para mim.
É Alice no País das Maravilhas em leitura própria, inventário de sentidos. Nesse primeiro momento a artista sintetiza ou desloca-se no mundo em sua experiência de sentir a existência de um modo muito íntimo. A exposição fotográfica é diferente, mas se vê a intenção, as fotografias dos trabalhos da artista plástica Gabriele Gomes. As fotos não mostram autoria do clic, algumas delas outras de amigos e fotógrafos A exposição se não tem um circuito definido, mas se pensarmos nos ícones colocados junto às fotos e acompanharmos como que a abertura de um livro, se dá no sentido horário em seis vitrinas iluminadas.
Não quero e não tenho porquês entrar no ecologismo em que a tinta causa isso, que a ação provoca aquilo, mas deixar claro que a artista possui essa inquieta necessidade de realizar, de compartilhar o seu sentimento de um mundo onde se pode encontrar nele.
Já imaginou uma estrada de rendas, feitas à mão (ou que nos remetem ao fazer e ao bilro, à feitura da renda), pensou nisso? É algo inusitado a nos colocar em vários pontos ao mesmo tempo, e nos dá essa tranqüila sensação de um mundo realizado no afeto. Nesse sentido possuem nas marcas da feitura da renda, na ação daquelas mãos que tecem ariadnicas a guiar pela tessitura, um caminho a se revelar onde quer que esteja.
Imagine que o trabalho da artista não é (nesse caso das rendas) a feitura porem a renda em dado lugar. De fato que pôr em um espaço a renda já nos produz a significação e variadas. Mas a sua artisticidade, isto é, o fato de a ação da artista ser uma arte. E de ela ser artista e arte ao mesmo tempo, não ela, o ato que realiza.
A construção da renda, o compartilhar de todo um processo é um novo momento. Não é mais a fazedora do fazer que apenas, põe algo de si no mundo e a mostrá-lo. Fazer pensar em sua significância em sua singularidade a existência pluralizada. Há uma escolha mais detalhada, o outro se projeta, a experiência do outro se realiza na obra.
As rendas foram feitas por vinte e oito rendeiras de Florianópolis, no sul da Ilha de Santa Catarina, em Ribeirão da Ilha e Pântano do Sul. Os nomes de vinte e oito senhoras que estão no livro follder. Elas que conhecem bem a tramóia das rosas, talvez venham ver as suas rendas destendidas de um lado a outro do lago, aquela senhora que teceu virá até aqui, a dona Altiva, Quinha, Lindaura, e as donas Maria e tantas mais possam vir e ver. Acredito que a artista buscou o fenomênico pronto da renda. Melhor se conheceu o seu fazer no fazer, e soube ministrar na sua moldura urbana as marcas de suas mãos. Aí intervém que é dela que parte, de alguém que faz.
As rendas mostradas ao vento, equilibradas por um fio, debatidas no reflexo, na intenção de jungir margens, de tramar e se instalam no ambiente. No conceito de intervenção exige que aquele que intervém seja ao menos o especialista. Aquele que sabe fazer e que faz.
Tem aquela historieta de um sujeito com um cheque na mão e na fila do ônibus, chega a sua vez (de entrar no ônibus) ele apresenta o cheque ao motorista e diz: vim sacar. É uma intervenção, na fila e na vida, na ação e contradição. Intervir é pôr num sistema algo que não lhe pertence e que se faz entender o deslocamento. A trama, a composição, o varal, a idéia pode ser até interventiva, mas antes de tudo é instalada, algo de fora é posto ali naquela situação.
A poesia revelada do outro é ao menos uma ponte que nos leva em sua direção. Mas como saber se o outro se fez poeta, que se poetizou ou que percebeu aquilo tudo que é tanto ele.
O outro não pode ser aquele do qual não podemos deixar de imaginar porque presente em nossas vidas. Como poderia compartilhar a língua, o vestir, o saber sem que não espere nada do outro? Estamos na mesma jornada existencial.
O outro é sempre o inominado, aquele que conhecemos pelo resto de humanidade ou pela tensão humanizadora de ser reconhecido, aquele que está em viagem com tudo o que somos e nos defrontamos pela vida afora.
O nome da instalação de Gabriele Gomes: “O outro aquele que não eu e eu tanto”. Indica que há certa cumplicidade entre os que assistem a obra e a artista, não sei de pretensões, mas sei a opulência do nome não fere a ação. Na verdade, a artista se vê no outro ao reconhecer no mundo as delícias deslocadas, a renda tão amada em suas tramas difíceis realizadas de pique a pique, na tramóia de ponto a ponto que forma o desenho, da agulha que os marca e os define e os realiza.
São sessenta metros de renda que se estandardiza junto à natureza. Está atravessada (pelo menos na imaginação), de lado a lado do lago, junto àquilo que nos reporta, que nos tira de uma posição e nos leva ao devaneio e a uma realidade solicitada em que se nos intervém. Poderá ficar pendurada num lugar urbano e nos encaminhar ou sermos pegos por sua representação.
Há muito de Beuys na intervenção de Gomes, no primeiro caso sei que é de dor crítica de uma realidade de sofrimento e no segundo a sinestésica representação de algo que não pode ser esquecido e não pode deixar de ser imaginado, o trabalho das rendeiras, a vida delas apresentadas no varal. Se for uma beusysada ou se é um Christo e Jeanne-Claude ou Ramos retomados, previstos, garanto que a artista é tão evidente em ser quem é que nenhumas influências a retêm.