Eu se errei
Teatro com Rafael Camargo e de Rafael Camargo
Pedro Moreira Nt
Hoje é aquele dia, o amanhã que chegou. E fui ver o Rafael Camargo dizer aquelas palavras daquele jeito.
Notei que há um pavor no rir, aquela platéia proibida, um eu conjunto submetido a alguma expectativa que se fizesse possível chacoalhar aquelas almas frágeis, aquelas ilhas da cotidianidade barroca, e é assombroso que todos nós - esse eu completo e disperso em "se errei".
Buscamos um trágico silêncio frente ao Jamil quando devíamos nos debulhar no rir. Um freio trágico. Talvez o nosso amado ator nos ajudasse com a cruel ironia snegiana entre seus belos e altos e baixos de sua dor. A dor de ter nascido e de ter vivido o riso sustentado na ausência de resposta. Esse ausente magnífico que reclamou, até sem motivos, de jamais ter uma de suas peças produzidas. Seja como for, a homenagem a Jamil Snege é também a sua exclusão. Próprio de nossa latinidade bonita, dessa atitude prometéica de vermos sangrar, e a manter viva a piada da morte. Como diria ao seu modo, José Vasconcelos, quando veio a se apresentar a um público silencioso: contei a primeira piada ninguém riu, a segunda foi um silencio geral, tentei a terceira e o enterro continuou, então, descobri, eles combinaram lá fora - ninguém ri, hein!
Os livros que andara perambulando em minhas atenções, um de sociologia sobre o simbólico, outro poema, outros contos curtos, outro, uma peça linda sobre Rousseau, e aquelas epígrafes em jornais. A alegria e o sofrimento em ações veladas onde aparece subsistir um trágico/cômico. Mas jamais chorado, nem aquietado, sem pausa, entre céu e terra.
Eu estive com esse "turco" na rapidez de suas lâminas de pensamento. Preciso de uma banana. O que é isso? Montou no estúdio do Kalkibrener e nela colocou um preservativo, escreveu uma frase estranha, mal lembro, que assumia o papel que se devia ter entre vida e morte. Depois foi na Ghingnone, ele me chamou. Não sei como se lembrava. Lançava aquele livro. Meu pai comprou para mim antecipando o meu pedido de dedicatória. Lemos em casa, rimos, e ele levou.
Homenagear os mortos é uma beleza, dirá quem quer que seja, não podemos crucificá-los, nem lhes dizer: não.
Fica na prateleira aquela peça e a intenção.
E eu me diverti com o Rafael. Vi algo que me chamou a atenção: a rubrica da peça de Jean-Jacques Rousseau, por si mesma um poema.
É bom ver que o ator tem suas medidas, tem a altura, peso, forma, concretude e intenções a usar das palavras como um mecanismo que leva à expressão, e faz-se realizar.
Bom também que ousou o nosso querido ator de pinçar os acontecimentos das narrativas de amigos, de íntimos e traduzir como fonte de sua verdade, a mais importante verdade. A ausência.
"Como eu se fiz por si mesmo" coloca a memória em dois caminhos: um eu que narra, e o outro eu, em si, que percorre as nuances do tempo. Há nisso uma crítica pessoal do feito, de um mesmo realizado, o vivido.
Pode-se dizer que Jamil fora um cronista no arquipélago do cotidiano. Entre ilhas do si-próprio construira suas pontes feitas da carne de céu e terra, de sua psicologia do sentimento.