“No man is an island. entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main; if a clod be washed away by the sea, Europe is the less, as well as if a promontory were, as well as if a manor of thy friend's or of thine own were; any man's death diminishes me, because I am involved in mankind, and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.” *
(John Donne)
Parece um pouco estranho falar da Medéia de Eurípedes com a epígrafe a respeito de um mundo onde a individualidade é parte da complexidade das relações, onde nada está separado. Estamos todos integrados num mesmo universo a caminho múltiplo de possibilidades e juntos.
Medéia trata da vida e morte, da traição que é a negação do continente e a criação do egoísmo, de uma ilha. Medéia, a mulher singular, criadora de sentidos, a totalidade significativa de quem é parte e todo, se apresenta àquele que ofereceu sua vida, a quem ritualizou a existência para uma completa união, e assim se fez além de um acordo burocrático de determinações e regimentos de casamento com a insígnia da verdade, construção cuja finalidade é indefinida, mas que se faz na relação e se amplia na prática afetiva, no conselho humano.
Foi para provar ao se esposo que não se está só, mesmo na solitude dos dias, mesmo nos mais vãos que se tenha. Como trazer essa individualidade interesseira, egoísta, despótica à realidade do todo e da sua imensa presença no ordinário comum da vida se não for pela morte do interesse e pela perda de sua extensão de sangue.
Medéia percebe que seus esforços nada valeram para uma mentalidade machista, entregue aos prazeres e de pusilânime infidelidade. A correspondência amorosa, os planos para o futuro, a educação e crescimento dos filhos, as relações com o trabalho produtivo nas praticas do dia a dia, uma ética do fazer juntos, de cumplicidade de se pensar no agora que é também um porvir; um aqui a que se estende ao espaço das convivências sociais, da cultura e política tudo se perde quando Jasão a trai, a engana, profana o seu leito, mente, encobre, varia, finge, cria táticas, estratégias para a submissão de Medéia.
Ela enlouquece de fora para dentro, engolindo um mar de covardias daquele a quem acreditava, estaria ao seu lado. Quando passasse o tempo e pudessem seguir para um fim esperado. Para trazer Jasão à verdade de sua existência teria de lhe tirar o amor, e o cargo, a fama, e o futuro de sua descendência, obliterando qualquer possibilidade de retorno.
Para o burguês comum, no ilusório promontório de sua individualidade, o mundo é feito de tecnologias para um uso próprio, feito de carvão e fogo nos finais de semana, de um templo convertido em prazeres secundários de uma formação matemática, de um tempo marcado no relógio, da crítica às dificuldades ou garantias de ter mais realizado em um ser que não se realiza senão na mitologização e no fetiche da coisa.
Por isso a epígrafe que foi usada em Thomas Morton e em Hemingway que se não pode deixar de apresentá-la aqui sem a profundidade dos autores, mas que incide sobre um tema aparente em ser obsoleto na modernidade fragmentada dos sujeitos. "Todo homem é um continente" (John Donne), e se alguém morre também uma parte de si morre.
Medéia realiza a completa individualidade de Jasão assassinando sua noiva, a Princesa e o próprio Rei Creonte com presentes envenenados. E em seguida, confirmada a morte de um futuro próspero para o esposo que a repudiou publicamente, o aguarda para eliminar a sua descendência e garantir a sua morte. Jasão cai em si, em sua tormenta de ser o indivíduo, - a ilha -, separado do mundo e se percebe parte do continente, mas já é tarde. Medéia está em cartaz num momento propício a se pensar o melhor que puder nas práticas sociais.
A interpretação de Helena Portela e Claudete Pereira Jorge exprime a força magistral de Eurípedes em trazer de uma realidade mitologizada a significação humana. A direção de Marcelo Marchioro possibilitou o equilíbrio entre cenário, luz e figurino em movimentos claros, definindo ações simples para as atrizes, onde o gesto vocal tornou-se limite entre a reificação das personagens euripidianas e a criação teatral.
Eurípedes destrona os deuses e devolve aos humanos a sua hegemonia entre vida e morte. Em vários planos, percebemos o cadafalso, a armadilha que é a morada de Medéia, estruturas delineadas em altos e baixos que definem em seus planos as ações. O cenário de Ricardo Garanhane nos leva a um painel com pontos de fuga que nos dá a idéia de profundidade, é uma bela inscrição cênica feita para o ator. Lembra os cenários de Adolphe Appia que nos oferece a plena presença da cena equilibrada com a luz.
De fato, a luz cênica de Érica Mitiko faz a mudança do figurino tingindo sutilmente e definitivamente a indumentária, que possui em si a presença dos atavismos da túnica grega e romana. Os adereços de cena, como a escultura representativa de Creonte, a máscara propositada num recorte de sombras preenchem a viva criatividade do artista em se nos trouxer o teatro em sua dupla significação entre real e imaginário.
MEDÉIA
de Eurípedes
Direção de Marcelo Marchioro
Fotos de Gilson Camargo
no cartaz e veiculação na mídia
cedidas pela atriz
Claudete Pereira Jorge
Cenário, figurinos e adereços: Ricardo Garanhani
Sonoplastia: Troy Rossilho
Iluminação: Erica Mitiko
Produção: Nautílio Portela
Apresentação até o dia 20 de maio de 2010
* (Tradução Google da epígrafe) "Nenhum homem é uma ilha. completa em si mesma, cada homem é um pedaço do continente, uma parte da principal; se um seixo for levado pelo mar, a Europa fica menor, assim como se um fosse um promontório, como se fosse a casa do teu amigo ou a tua própria; morte de qualquer homem me diminui, porque estou envolvido na humanidade e, portanto, nunca mandes indagar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti." (John Donne)